Afinação
I
Quando era mais novo
de tanto afinar os meus versos
rasguei a mão direita
na quase perfeição
de um deles.
II
Num choro orgulhoso
provei do meu sangue
e gostei.
III
Hoje há esta cicatriz
legível, repetida,
servindo de padrão
dos feitos duma alma
que como o fumo
ao tocar o ar gelado
ganha formas, vidas
se torna único.
Alma Presa
Deixei a alma presa
no fundo dum saxofone
e do meu avião de papel
feito, dobrado na hora
não tenho força para a tirar
novamente cá para fora.
Ápice
Cruzam-se
pela mão crua
rasgões de golpes
de ternura
desenhados
contra a chuva
como tábuas
pregadas à pressa
em portadas
de fuga.
Aranha
Presa na seiva tece lenta
a sua existência
de teia.
Arrepio Cardíaco
Os meus ossos
dançam cá dentro
ao som do frio
enquanto gentilmente
o coração se arrepia
as mãos se pintam
de púrpura
fora dos bolsos
a apanhar palavras
do vento para oferecer.
Ausente de Mim
Volto para dentro de mim
E perco-me uma vez mais
Neste decadente botequim
De interrogativas animais
Sextos sentidos trocados
Velhas charadas sem fim
Conduzem-me aos bocados
Novamente para fora de mim
Porque é tão presente
Esta sensação ruim
De estar sempre ausente
De mim?
Avesso
Tranco-me
em partes de hora
espremendo-lhes
a forma de tragédias
pessoais a haver
pelo luxo dos olhos
ardendo vermelhos
me iluminarem
o avesso na noite
que ainda não
tive de vestir.
Breve Segundo
Tanta singeleza
num pedaço de tempo
em que me esqueço
de tudo e apenas o vento
sei que passa porque
não consigo
deixar de sentir.
Casulo
Já pouco
me deixa
a boca
em garra
e assim, enfim
me envolvo
no deserto
que plantei
de emoções.
Concreto
Os dias crescem
e as noites embelezam-se
no diluir do concreto.
Depuração
Pudesse eu inventar
uma palavra pura...
Que tivesse em si
tudo e cada coisa
ao mesmo tempo,
o maior dos prazeres.
Mas não invento
que nunca mais
repeteria o prazer
morrendo nele.
Desaire
De todos os bater
de asas douradas
em voos picados
que vão sendo
sussurrados
no silêncio
dum grito mudo
todos esvoaçam
nenhum se faz meu.
Tenho os olhos
demasiado cosidos
pelas cordas
da minha guitarra de ar.
Dia Inteiro
Na derrota
de uma claridade,
que me serpenteou
de calor horas a fio,
pouso, numa pedra
com horizonte,
o corpo pesado.
Saboreio, enfim,
o dia inteiro
nos mil silêncios
em que a noite
irrompe do cair
do sol.
Ecos Mentais
Provocando atrozes
Desejos no corpo são
Surgem vozes
Dentro da cabeça
Deste camaleão
Gritando: Sê pessoa!
Voa! Ecoa! Nada à toa!
Supera Pessoa!
Sempre que anoiteça
Cede às vozes, ao prazer
À carne nua. Crua
Deixa-te apodrecer
E saboreia novamente
O teu próprio renascer!
Ecos Metálicos
Quando regresso a casa
gelado e cansado
sabe bem aquecer
os ossos vergados
aos ecos metálicos
que saltam
dessa folha ardendo
versos
passados à mão
com tinta negra.
Elástico
O elástico agora novo
do meu bloco negro
ecoa pela casa
cheia
de papéis escritos
ainda em branco
prestes a prolongar
a existência dum dia
outrora quebrada
pela película preto
e branco diária.
Em Terra de Ninguém
És apenas alguém
Que saiu do nevoeiro
Ser caminhante
De passo errante
Afastando-se do bem
E quem sou eu?
Apenas alguém
Que saiu do nevoeiro
Num escuro como breu
Alma insatisfeita
De ideia constantemente
Pensada, repensada
Organizada, reorganizada
De mente simplesmente
Sempre e nunca refeita
Apenas alguém
Que saiu do nevoeiro
Sem um paradeiro
Em terra de ninguém.
Espada
Arranco da espada
contra o caminho
os últimos raios
que mo iluminam.
Evasão
Aprisionei-me em mim
Dentro dum sonho meu
Fruto de mente que elouqueceu
E no sonhar se esqueceu de mim
Acordei deste sonho
Um ser confuso a estremunhar
Procurando saber explicar
A essência deste e doutro sonho
Agora um sonho é tudo
E daqui a quase nada
Mera areia pelo vento levada
E assim também é tudo.
Fogo Arcaico
Pode um
nevoeiro
denso
privar do
fogo arcaico
um pedaço
de cabelo
aos rumores
da cidade
vazia.
Ignição
Apetece-me
pegar em mim,
desfazer-me.
Voltar a montar
tal como vinha
no livrinho de
instruções.
Por mero acaso
trocar a ordem
acabar metáfora.
Improviso
Soltam-se
as amarras
e o coração
embarca doido
na côdea da noite.
Inevitável
Um dia
escorre-nos
cara abaixo
um botão de rosa
bordado a ouro
do tamanho do amor
pela inevitabilidade
de se adultecer.
Nó Cego
De improviso
ao entardecer
rasgo o coração.
Gota a gota
suavemente
desfaço
o nó cego
que me vai
na garganta.
Pedal
Um pouco mais
de pedal
eu era vento.
Português Suave
Horas depois
já clareava o dia
repetiam-se
os mesmos ruídos
a provocar nós
na mente
cada novo cigarro
era uma agulha
nas pernas
prendendo-me
à ardida sensação
de me sentir vivo.
Procedimento
Rasgo a cavilha
e engulo o próprio
coração adornado
de fogo.
Roseiral
Deixo-me ficar
pelo roseiral
entretanto negro
da palavra
que o deixou
e nisto, o calor
desperdiçado
num único suspiro
para sopros
dum vento gélido
denuncía um ser
infinitamente só.
Silêncio Pisado
Passos apressados
pisavam
o silêncio que me rodeava
e eu sentia
os meus versos
revestindo-se de carne
ganhando músculo
erguendo-se dentro de mim
como querendo sair
saindo.
Solidão
A solidão é ainda
o meu pisado ego
que sob o ténue
véu dum verso
escondo
envolto em
pétalas negras
choradas
de quando
o tento libertar.